Aline Accioly Sieiro - Psicanalista

Categoria: Educação (Page 4 of 8)

Ensinando matemática

Falar de exatas é terreno perigoso quando você é de humanas. Mas exatamente por querer comprar essa briga que muitos bons artigos tem saído por ai. Os artigos que vou comentar hoje são do mesmo livros que indiquei no último post: “Ensino fundamental: conteúdos, metodologias e práticas“, organizado por Selva G. Fonseca.

Se você pensa que matemática ajudar a aprender a raciocionar, que é coisa de gênio e deve ser ensinada porque um dia vamos usar tudo aquilo que aprendemos na escola… então você é da escola antiga e dominante. Antes que você tenha um ataque histérico, claro que a matemática ajuda a aprender a raciocinar, mas não mais do que qualquer outra disciplina. Se pensarmos na matemática como uma linguagem, então ela deveria ter o mesmo trato do que qualquer outra linguagem, ou seja, estar sujeita a críticas e mudanças na forma como é ensinada. Mas não é isso que vivemos ao longos dos anos. É a tal falácia de que com a matemática tudo é diferente.

“A matemática desenvolve o raciocínio das pessoas tanto quanto qualquer outra área do conhecimento (…) é ingenuidade acreditar que cabe essencialmente a matemática tal façanha” (Página 120)

A verdade é que o ensino da matemática está obselto, e a maior prova disso é que 90% dos alunos vão mal nessa matéria. E dizer que isso é normal é só justificar um problema com outro. Essa matemática ensinada, em termos de conteúdo e de didática, é velha e não faz sentido frente aos avanços sociais e tecnológicos da humanidade. Mas antes que vocês me matem, tentem entender um pouco essa linha de pensamento.

“Segundo o senso comum, quem não aprende é porque não sabe raciocinar e quem aprende é muito inteligente. Esses mitos não deixam de ter algum fundamento, porque na maioria das vezes, quem consegue acompanhar as aulas já dispõe dos instrumentos cognitivos, dos conceitos e das relações que compõem os currículos expostos. Mas, como fica a grande maioria que vai à escola para aprender o que não sabe? Isso nem sempre é considerado. As dificuldades ou os fracassos, em geral, são vistos como decorrentes de empecilhos, de algum modo vinculados ao aluno ‘falta de base’ ou de condições para aprender, problemas familiares, deficiência mental ou cultural, etc.” (Página 100)

Segundo Ubiratan D’Ambrosio, a matemática tem muito a ver com o tempo e com o espaço. A partir desse recorte, foi criada uma sequência para se ensinar matemática no contexto escolar. O que aconteceu é que essa matemática ficou congelada, já que nossa realidade de tempo e espaço mudou, mas o ensino da matemática não mudou.

Para Guilherme Saramago e Ana Maia Cunha, o ensino da matemática ainda segue o esquema da repetição, quando deveria incluir uma reflexão-ação-problematização para além de fórmulas e aplicação delas em listas de exercícios. Da forma como está, o aluno não aprende pela ação e sim pela famosa “decoreba”.

Benerval Pinheiro defende que a matemática deve ser pensada para todos, e não só para um grupo de gênios, porque desta forma não serve para a vida prática dos alunos. Esse, aliás, é um grande mito da matemática, e que impede uma mudança na forma de ensinar, pois é vendida para professores e repassada ao longo dos anos.

“Um tipo de educador, ingênuo e alheio às potencialidades de um importante instrumento social de preservação e de libertação, que é a educação, coloca-se a serviço da continuidade do mesmo estado de coisas que atende aos interesses da classe dominante ou (…) atuarão como intelectuais orgânicos a serviço da construção da hegemonia dominante, da classe dominante.” (Página 131)

O que acontece é um ensino da matemática pela matemática pura, e não por uma utilização prática. E com a falácia de que um dia você vai usar tudo isso, e vai entender. A matemática passa a ser mais importante do que o aluno.

“O mais grave é que, enquanto a energia do sistema educacional vai em preparar estudantes para se saírem bem nos testes, se deixa de lado a necessária inovação educacional. Isso é mais grave em matemática. (…) A ilusão de justificar um currículo por ser importante para o povão decreta o fim do sistema educacional.” (Página 86)

Bom, se eu consegui te provocar um pouco com essas questões, aconselho a leitura dos artigos citados. Com certeza os autores provocam com muito mais condições do que eu. E assim vamos conversando sobre a luta por uma educação mais popular, de fato.

Conversando sobre educação

Estive lendo alguns livros na área de Educação e acho importante recomendar textos que falam das novas propostas pedagógicas como uma realidade e não como uma utopia. O que me cansa na educação é esse discurso repetitivo sobre como é muito difícil mudar (porque depende do governo, porque depende de verba, porque depende de x, de y… enfim, tudo é motivo para dizer que não dá pra mudar) e o que já sabemos, na prática, que mudar é possível quando existe um desejo que mova essa mudança.

Hoje vou comentar um pouco sobre o livro “Ensino Fundamental: Conteúdos, Metodologia e Práticas”, organizado por Selva Guimarães Fonseca (Ed. Alínea). Apesar do título, o livro discute muito mais do que propostas de ensino fundamental. Ele é dividido em disciplinas (Português, Matemática, Ciências, História, Geografia, Artes e Educação Física) e em cada uma delas apresenta dois ou três artigos de pesquisadores e professores do tema.

No item Português, os artigos discutem essa idéia de que para se ensinar a ler é preciso ensinar a escrever, como se fosse uma habilidade única. Já sabemos (ou pelos menos deveríamos já saber) que são momentos diferentes no aprendizado de uma língua, e também sabemos que um apaixonado por leituras não será necessariamente um escritor, e vice-versa. Uma proposta feita nesses artigos é de ensinar a ler pela via da oralidade. Perde-se muito tempo tentanto “incentivar” a meninada a ler, e não percebem que para que um aluno goste de ler, ele precisa aprender a ler para além da decoficação de signos linguísticos. E a escola erra nisso, porque propõe leituras obrigatórias, porque pede produção escrita após toda leitura, e porque não “perde tempo” lendo com seus alunos. Parece simples, uma coisa boba, mas não é. O simples fato de ler junto com os alunos é a maneira mais simples de se “incentivar” a leitura.

Meus filhos adoram ler. Eu adoro ler e minha mãe adora ler. Não me lembro de ela ficar me dizendo, quando criança, para ler. Mas ela lia tanto, que foi natural pra mim o gosto pela leitura. E o mesmo aconteceu com meus filhos. Escuto o tempo todo pais me pergutando qual é o segredo, e quando pergunto: “Mas você lê, gosta de ler?”, e eles: “Ah, eu detesto, se li um livro nos últimos cinco anos, é muito” , que mágica esperam, então? A leitura é um hábito, e só acontece em um meio propício para isso. Portanto, é esse “ensinamento” que deve ser feito com as crianças. Um professor que lê com os alunos, que mostra as coisas boas ligadas a leitura no simples processo da oralidade está contribuindo muito mais para criar futuros leitores, do que um professor que ainda está preso a produção escrita pós leitura obrigatória.

“Leia para seus alunos, partilhando com eles as conexões que faz ao ler. Quando conectamos nossas experiências com novas informações, ficamos mais aptos para o engajamento na leitura e para compreendê-la. Não há nada mais poderoso do que um professor alfabetizador partilhar sua paixão por ler, escrever e pensar.” (Página 38)

“Antes de incentivar, ou concomitantemente, para ser mais cuidadoso, é necessário ensinar a ler – não para entender o funcionamento do sistema linguístico, mas para estabelecer conexões intelectuais com o objetivo formidável de atribuição de sentidos” (Página 46)

No outro artigo que trata da produção escrita, se discute o erro comum dessa nossa pedagogia velha, que é ensinar gramática pura e achar que esses ensinamentos produzirão autores. Ora, que espaço existe hoje na escola para a produção escrita, livre de regras gramaticais e objetivos mil? O que temos como resultado disso são crianças e adolescentes que conhecem as regras e o código linguístico, mas que não sabem escrever textos, não sabem se fazer entender pela escrita. Bakhtin já dizia isso, quando falava que a linguagem não pode ser vista como um sistema fechado, acabado, porque isso não daria espaço para o surgimento de autores. O que acontece é que a escola gasta muito tempo com a gramática, como se dominar regras criasse escritores-autores.

“Professora, quantas linhas? – Quando o aluno entender que produzir um texto é produzir linguagem, quem sabe não será preciso responder a essa comum pergunta feita por alunos que não se apropiaram do que de fato significa a produção de texto narrativo de ficção.” (Página 69)

Para não ficar muito longo o post, vou deixar pra falar das outras disciplinas depois. Mas espero que tenha deixado vocês curiosos o suficiente pra ler o livro todo. E o mais importante, além de de ler, mudar suas práticas.

Ainda sobre a formação e instituições psicanalíticas

Para ler o texto inteiro, clique aqui.

Sobre a Psicanálise e os Conselhos de Fiscalização Profissional

Considerando o surgimento recente de cursos que prometem formar “psicanalistas clínicos”, expedir diplomas de “bacharel em psicanálise” e proceder inscrição dos egressos em “Conselho Regional de Psicanálise”, temos a informar o que se segue:

A Psicanálise é uma teoria a respeito da personalidade humana que incorpora um conjunto de métodos destinado tanto à produção do conhecimento a respeito da personalidade, quanto à intervenção clínica com vista à cura de distúrbios. Enquanto corpo teórico, com seus pressupostos e explicações, tem sido divulgada e utilizada para fundamentar análises em várias áreas da atividade humana, como na interpretação da simbologia de textos literários. Enquanto instrumento de compreensão e intervenção clínica, constitui-se uma opção, dentre outras, para o diagnóstico e a assistência psicoterapêutica.

(…)

A psicanálise, por ser uma abordagem teórica e metodológica que, enquanto instrumento de assistência clínica psicológica, é utilizada em profissões já regulamentadas, não se constitui nem deve se constituir profissão independente.

A aprendizagem dessa abordagem, por parte dos psicólogos, se dá inicialmente no curso de graduação, em disciplinas específicas, e tem sido complementada em cursos de pós graduação oferecidos pelas entidades e grupos que congregam especialistas. Essas entidades e grupos possuem critérios e procedimentos próprios para a formação plena do profissional, que em regra incluem três atividades indissociáveis, os cursos teóricos, a supervisão de casos e a análise pessoal.

Portanto, não existe no mundo jurídico o título de bacharel em psicanálise, a profissão de psicanalista e muito menos a de psicanalista clínico. Qualquer curso, em nível de graduação, que prometa a formação de profissionais com essa denominação, está fazendo propaganda enganosa e, portanto, lesando o consumidor, o que poderá constituir nas infrações previstras nos arts. 7o, VII e 66, 67, da Lei nº 8.137/90 (Código do Consumidor).

(…)

Sendo assim, um curso de psicanálise jamais poderia gerar o direito a diploma de “Bacharel em Psicanálise”, nem tampouco, o título de “Psicanalista Clínico”. E é também ilegal a criação do “Conselho Regional Psicanalítico” ou “Conselho Federal Psicanalítico” por via cartorial.

(…)

Não fosse suficiente, à toda evidência, sequer seria possível a criação da “profissão de Psicanalista ou Psicanalista Clínico”, ainda que ultrapassado o processo legiferante federal, uma profissão não pode ser criada a partir dos recursos utilizados pelos profissionais de saúde mental para o exercício de suas atividades. Ou seja, a Psicanálise, assim como a Gestalt, o Behaviorismo, a Fenomenologia, a Psicologia Analítica e muitas outras abordagens teóricas são instrumentos de intervenção dos profissionais, não fazendo qualquer sentido serem tratadas como objeto específico que justifique a criação de uma profissão.

Modernidade ou Pós Modernidade?

Antes de começar é importante dizer que existem grandes discussões acerca da nomenclatura que se dá para um conjunto de características da nossa sociedade vigente. Alguns autores acreditam que estamos na era moderna enquanto outros defendem a existência de uma pós-modernidade. Não vou resolver essa questão, apenas apresentarei alguns pontos para discutir um pouco as características que compõem esse momento que chamo de modernidade. (Isso aqui é só um pedacinho de uma pesquisa, ok?)

Para alguns autores como Jair Santos, modernidade se refere às mudanças ocorridas nos últimos dois ou três séculos, representando liberdade e autonomia. O indivíduo passa a ter consciência de si, tornando-se cidadão e sujeito histórico. Rompem-se todas as barreiras econômicas, políticas, sociais e culturais. O fácil acesso à informação aproxima os homens e as civilizações. O homem moderno está em contato com todos os homens do presente e do passado, do contemporâneo ao ancestral.

Já o pós-moderno nasce com a computação, e oferece à sociedade muitas facilidades trazidas pelas tecnologias, porém tem um lado negativo: limita as sociedades de forma abrupta. Isso porque na modernidade se buscava a essência do ser, e agora no pós-moderno as pessoas recebem tudo pronto com o advento da tecnologia, e esquecem de pensar. O pós-moderno chegou com a tecnologia de forma a deixar as pessoas mais presas em suas individualidades.  No plano econômico, o modelo é chamado capitalismo flexível, no qual o homem se entrega ao presente e ao prazer, ao consumo e ao individualismo. Jair Santos diz que o ambiente pós-moderno é basicamente isso: entre os indivíduos e o mundo estão os meios tecnológicos de comunicação, que não informam sobre o mundo e sim o refazem à sua maneira.

Gérard Raulet associa modernidade ao marxismo. Para ele, Marx via na modernidade não só a contradição inerente à sociedade, mas também à expressão da irracionalidade da realidade. Na modernidade, portanto, existiria uma relação complexa entre racionalidade e irracionalidade surgida pela realização da razão e da irracionalidade ao mesmo tempo. Ainda falando de Marx, ele relembra que os marxistas contemporâneos não aceitam a existência de uma pós-modernidade porque, para que esse tempo existisse, a modernidade teria que estar morta e isso ainda não aconteceu. Uma organização social nunca desaparece antes de desenvolver todas as forças produtivas que ela é capaz de conter e, sendo assim, seria necessário primeiro esgotar a modernidade, para aí sim falar na possível existência de uma pós-modernidade.

Para Siqueira, a pós-modernidade é um contexto histórico que se caracteriza por profundas transformações no campo tecnológico, na economia, na cultura e nas formas de sociabilidade, assim como na vida cotidiana. Ele acredita que a pós-modernidade é um fenômeno que expressa uma cultura globalizada e de ideologia neoliberal.

Jair Santos acredita que as relações entre modernidade e pós-modernidade são ambíguas. Ele defende que o individualismo atual nasceu com o modernismo, mas o seu exagero narcisista é um acréscimo pós-moderno. O homem moderno mobilizava massas para amplas lutas políticas; o homem pós-moderno atua apenas no microcosmos do cotidiano. Assim, o pós-modernismo é caracterizado pela tecnologia eletrônica de massa e individual visando a saturação de informações. Na era da informática lida-se mais com o signo do que com as coisas. Portanto, no pós-modernismo a sociedade é ávida pelo consumo personalizado, que tenta a sedução do indivíduo isolado para que usem seus bens de serviço. Por isso, o pós-modernismo encarna estilos de vida nos quais imperam o nada, o vazio, a ausência de valores e de sentido para a vida, e por isso se entrega ao presente, ao prazer, ao consumo e ao individualismo.

Segundo Taschner, a pós-modernidade por vezes aparece como um momento que sucede a modernidade, e em outros momentos aparece como uma era que se contrapõe a ela. Para ele, muitos são os teóricos que apontam a inexistência de um momento pós-moderno, pois entendem que esse momento estaria ainda incluído na modernidade.

Para Jair Santos, o pós-modernismo surge em termos de consumo e informação. Porém, ele admite a existência de debates em relação ao termo correto para nomear a atualidade, e por isso acredita que ainda não é possível dar uma definição correta e certa se o momento em que vivemos é modernidade ou pós-modernidade. Essa discussão é ampliada por Taschner, que relembra que essa temática pós-moderna vem sendo amplamente discutida pelas mais diversas áreas do saber. Esses estudiosos partem do pressuposto que a crise da modernidade consiste na situação de que a ciência moderna não mais proporciona as bases teóricas que possam apreender a possível condição pós-moderna, ou seja, a realidade contemporânea.

Harvey, outro estudioso desse assunto, defende que as mudanças que ocorrem na atualidade são, na verdade, não uma pós-modernidade, e sim um novo ciclo de compreensão do tempo-espaço na organização do capitalismo. Ele complementa, portanto, que a chamada pós-modernidade é caracterizada por transformações que acontecem no cotidiano e que se pauta na sociedade capitalista, numa nova fase que se mostra extremamente flexível. Se essas transformações ocorridas pautam-se na estrutura capitalista, então as relações modernas mudam principalmente em relação ao espaço/tempo.

Tratando mais especificamente do capitalismo, Sennet fala do chamado capitalismo flexível, um sistema que enfatiza a flexibilidade e ataca a rotina. Está sempre exigindo dos indivíduos agilidade e abertura para mudanças em curto prazo; o indivíduo precisa aprender a correr riscos e depender cada vez menos de leis e procedimentos formais. Este autor relembra que antes o tempo era linear, as conquistas eram cumulativas, o tempo era previsível e a sociedade reconhecia o indivíduo por suas conquistas individuais. Porém, com o advento do capitalismo flexível, o curto prazo instaura uma perda de controle, que corrói a confiança, a lealdade e o compromisso mutuo. A flexibilidade exigida corrói os laços em longo prazo, pois ser dependente neste momento não é desejado.

Outro autor, Berman aborda a modernidade enquanto campo de divergências e construções, e ao mesmo tempo de caos, fragmentação produtiva, social e psíquica, alienação e exploração física e mental. Para ele, a sociedade moderna vive sob um sistema de renovação, cuja destruição é a única possibilidade de existência. Por isso a dialética da modernidade encontra-se na existência de opostos. A modernidade seria somente um nome dado a um novo estado de coisas, uma nova configuração das relações, a existência de uma nova tecnologia, e com essas mudanças o homem passou a ser substituível.

Mas porque discutir modernidade e pós-modernidade? Que importância isso tem na vida e no dia-a-dia das pessoas? O adoecer, eu diria.

(Continua…)

Concurso Público

(Se você é deficiente visual, ou simplesmente não gosta de ler, o audio esta no final deste texto)

Quando assistimos filmes “antigos”, que se situam aproximadamente entre 1970/1980, as famílias em geral são retratadas da mesma forma: classe média, o pai funcionário de uma grande empresa que com seu salário garantido sustenta a família. Essa família, em geral, é composta pela esposa (que por sua vez trabalha em casa ou na rua – por opção) e pelos filhos (dois ou três). Uma família feliz, pois consegue ter uma vida boa, fazer viagens de férias, ter seu carro, seus eletrodomésticos e sua casa própria. Nos encontros com os vizinhos, cada um fala muito bem de sua empresa e de seu trabalho, e de como a estabilidade é o melhor bem que o emprego pode dar.

Mas o tempo foi passando e o capitalismo foi entrando em crise. Com ele, as empresas também mudaram sua forma de tratar os empregados, que cada vez tem que trabalhar mais, com menos benefícios, e sem garantia de que terão o emprego no dia seguinte. Com essa mudança de mercado, o desejo das pessoas também foi mudando. Elas começaram a almejar cargos e posições públicas pois estes oferecem  garantia vitalícia de emprego, apesar dos salários não serem tão competitivos como o mercado. Além dessa garantia (que por si só já atrai 90% dos “concursandos”), todos nós sabemos do velho e famoso ditado: quem é funcionário público ganha pra trabalhar pouco. Sem o medo de ser mandado embora não há uma exigência em produção e qualidade de serviço executado. Quem aqui já não precisou de um serviço público? Nessas horas sabemos bem como as coisas funcionam (com raras exceções – que vou discutir mais tarde).

Com esse novo objetivo traçado, centenas de brasileiros começaram a dar uma atenção maior aos chamados concursos públicos. E com isso houve também um crescimento na oferta dos cursinhos, essas escolas que fazem um preparatório para provas de concursos. E a partir daí, acho que podemos dividir essa galera em dois grupos:

1) Qualquer coisa tá valendo: nesse grupo, temos aquelas pessoas que querem ser funcionárias públicas. O cargo? Isso não importa. O primeiro concurso que sair, essa pessoa vai prestar, e vai prestar todos os outros, na sequência, até passar. Um graduado em direito, por exemplo, vai prestar para vagas de delegado, promotor, procurador, juiz, fiscal… Enfim, vai prestar em todas as áreas que sua formação permite. O importante é mamar nas tetas do governo, ter seu emprego garantido, trabalhar o mínimo necessário e ficar tranquilo para o resto da vida. Acontece, muito raramente, de um funcionário público desse grupo realmente se interessar por sua profissão (pura sorte) e aí realmente trabalha pra valer, fazendo valer o salário que o povo paga pra ele.

2) É isso que eu quero: nesse grupo, as pessoas não querem qualquer profissão. Elas já sabem o cargo que querem exercer, e portanto vão estudar e focar naquele objetivo. No fundo, o que elas querem é exercer a profissão, seja onde for. Mas como o mercado não anda bom pra ninguém, os concursos são uma oportunidade de ela exercer sim a profissão que quer, fazendo o que gosta, e ao mesmo tempo tendo o seu salário garantido. Essas pessoas entram com uma sede de trabalho muito grande quando passam no concurso. Mas algumas acabam entrando no esquema folgado, porque percebem que querer trabalhar quando ninguém quer é muito difícil e dá muita dor de cabeça. Algumas poucas continuam brigando pra trabalhar (isso parece ridículo, mas é a mais pura verdade) e trabalham mesmo, pesado.

Acontece que quando uma pessoa decide prestar o concurso público, ela pensa que o mais difícil é a parte do estudo, ou seja, passar na prova. Muitas pessoas passam anos e anos de suas vidas estudando, e por vezes são engabeladas por editais de concursos que só querem mesmo enganar os coitados. Digo isso porque muitas pessoas deixam suas vidas em pausa pra estudar, pagando esses concursos, ou mesmo gastando seu dinheiro com livros, etc. Tudo em prol da tão sonhada vaga. Essas pessoas já enfretam um problema: muitos editais de concursos são feitos só pela burocracia: algumas pessoas já trabalham nos cargos do edital, mas como contratadas, ou substitutas, e os editais pretendem oficializar essas pessoas nos cargos. Mas como são obrigados a dar oportunidades para todos, lançam editais “engana-trouxa”. É horrível esse nome, mas não poderia ser dado outro. Esses editais já são preparados para encaixar exatamente os perfis daqueles para as quais as vagas se destinam, ou seja, os que já trabalham na área (ou os apadrinhados, por ‘n’ motivos). Como um número grande de pessoas consegue preencher os requisitos, o segundo passo é preparar uma prova em que os apadrinhados vão melhor do que o povão. E o terceiro passo, em geral numa fase subjetiva, os critérios não ficam claros, e mais uma vez os apadrinhados terão grandes chances. Esses são os editais em que eles conseguem arrecadar bastante dinheiro (das inscrições) e no final não se vê muita supresa, quando os aprovados são em 80% as pessoas apadrinhadas.

Há ainda aqueles casos em que os apadrinhados não conseguem passar. Aí temos um segundo problema que é a convocação. Então você está feliz da vida porque passou, mas percebe que nunca é convocado. Até desiste, já que a validade desses concursos é cada vez menor. O que você não sabe é que muitas vezes, mesmo com candidatos aprovados, eles continuam contratando (por fora) ao invés de convocar os aprovados. Se você bobeia e deixa de acompanhar o diário oficial (em muitos concursos, o aprovado só tem como acompanhar as convocações e contratações pelo diário oficial), você tem grandes chances de ter sido passado pra trás mais uma vez.

Eu poderia ficar aqui contando todas as situações em que os concursos são mero teatro, mas vou falar do outro lado da história. Muitas pessoas acabam ficando espertas com esse movimento todo, e ficam de olho, atentas. Não desistem, e quando percebem alguma coisa desse tipo, brigam, lutam. Entram com recursos, pedem anulação do edital para o MP… Enfim, há muita coisa que pode ser feita quando se tem indícios de fraude nos concursos. Uma pena que a grande maioria, mesmo sabendo disso, não tem a força para entrar em um processo, e acaba deixando pra lá. Mas quem tem força consegue muitas vezes anular concursos e ter uma nova oportunidade verdadeira. Não posso deixar de falar também nas universidades e estados que fazem sim concursos íntegros, dos quais muitas pessoas se beneficiam. Mas, na dúvida, é bom ficar alerta.

De qualquer forma decidi falar de tudo isso hoje porque percebo a inocência do chamado “povão” quando sonha com o cargo público. Mas a verdade é que poucos se beneficiam e conseguem essas vagas. O grande resto enche os cofres dos cursinhos, da conta do concurso público, e é só número pra fazer volume. Essas pessoas, em geral, nem sabem porque querem prestar o concurso público, porque em geral estão naquele primeiro grupo que eu descrevi acima. E quando falo em inocência, quero dizer das mil maneiras que o governo e a sociedade têm de enganar o povão. Damos os sonhos, dizemos que eles podem sonhar com ‘a’ e ‘b’, e no fundo sabemos que as chances desses sonhos se concretizar são mínimas. E temos que pensar nisso também, que sonho é esse que nossa sociedade produziu, no qual o grande objetivo é mamar nas tetas do governo. Estamos vivendo um momento político muito assistencialista: não produzimos melhores condições, pelo contrário, damos algo para o povo ficar satisfeito e calado. E os sonhos e objetivos das pessoas têm refletido isso, como esse sonho de concursos públicos. Isso é muito perigoso, porque cada vez mais deixamos as pessoas acreditarem que o melhor pra elas é mamar nas tetas de alguém, e não exigir condições para ser independente.

O quanto antes pudermos denunciar essa prática (em todos os setores), mais damos chance para que as pessoas possam pensar criticamene e de fato escolher seus sonhos e objetivos para além daquilo que a sociedade mostra que devemos e podemos desejar. Mas, se o seu sonho for esse mesmo, então tenha peito pra brigar pelo que é certo, porque será um longo caminho a ser trilhado, caminho esse que não termina com sua aprovação.

Leia também: Brasileiro vai ser sempre brasileiro

Podcast Episódio 05 – Educação a Distância

Neste Podcast, eu (Aline Accioly) e a Prof. Dilma Mello conversarmos sobre Educação a distância. Discutimos sobre as concepções e preconceitos que existem sobre o assunto.

Outras opiniões sobre o tema:

Educação a um clique

A educação ideal

Estude Psicologia de Graça

Educação a distância: construção de uma proposta sócio-interacionista com mediação tecnológica

Citações:

Moodle

Chat Educacional

Etienne WengerComunidades colaborativas

Vera MenezesO papel da educação a distância

Heloisa CollinsEducação a distância para inclusão social

Maximina Freire

Conceito de PresençaAqui também

Audio Books

Como vocês já devem saber, tenho um filho com baixa visão. E não é de hoje que me envolvo em projetos e estou sempre atenta a tudo que acontece sobre deficiência visual.

Sempre tive vontade de gravar audio books, pensando nele e em outras crianças e adolescentes, porque vejo que muito do que já temos é voltado para um público adulto. Hoje tive a felicidade de encontrar dois projetos que já estão fazendo este trabalho. Em um deles, você pode se voluntariar, e gravar livros em português ou em qualquer outra língua.

O primeiro projeto é brasileiro, e você pode ver aqui: Projeto Audiolivros

O segundo não é brasileiro, mas também possui livros em português: LibriVox – Aqui está o catálogo dos livros já gravados, em português.

Se inscrevam e façam também parte desse projeto!

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