Aline Accioly Sieiro - Psicanalista

Revista SuperInteressante – Não recomendo

Bom, como uma boa psicanalista, me sinto na obrigação de ler tudo que sai sobre análise, Freud, terapias, enfim, o que a mídia fala sobre o assunto. Volta e meia temos revistas abordando esse assunto, sejam as terapias em geral, seja a própria psicanálise, seja Freud, enfim, os assuntos estão sempre pipocando por ai na “boca” das revistas. E hoje vou dar dois exemplos do que pode ser bom e do que pode ser ruim, muito ruim.

A revista Cult do mês de junho, praticamente esgotada antes do final do mês, fala sobre Lacan. Com artigos escritos por grandes nomes da Psicanálise no Brasil, faz um Dossiê muito bem escrito e repleto de informações acerca da psicanálise Lacaniana. A reportagem pode ser lida tanto por psicanalistas, quando por leigos, interessados ou curiosos, o que costuma ser difícil de conseguir em poucas páginas. Recomendo a leitura.

Agora me envergonha uma revista do porte da SuperInteressante fazer um tamanho mal uso de suas páginas, em uma reportagem muito mal escrita. Muito se fala sobre psicanálise no popular, e muito termos psicanalíticos ganharam a boca do povo. Mas a psicanálise de fato fica bem distante desses ditos populares. O que se diz que é a psicanálise e o que de fato ela é, é o mínimo que poderíamos esperar de uma reportagem que se propõe a pesquisar se uma terapia funciona. Qualquer pessoa um pouco mais interessada em saber sobre psicanálise tem a sua disposição milhares de livros, artigos científicos, e até mesmo boas explicações em sites facilmente achados pelo Google. Além disso, muitos psicanalistas ficariam contentes em explicar, desmistificar e colaborar com a reportagem, Por isso me admira uma jornalista não se dar ao mínimo trabalho de pesquisar para falar sobre psicanálise, na reportagem central da revista SuperInteressante, porque é isso que parece.

Primeiro, a reportagem não fala só sobre psicanálise, se propõe a falar sobre “terapias”, e não poderia ser mais geral. Até o dicionário fala melhor sobre terapia do que essa reportagem. Segundo o dicionário Houaiss, terapia pode ser:

1    tratamento de doentes; terapêutica
2    toda intervenção que visa tratar problemas somáticos, psíquicos ou psicossomáticos, suas causas e seus sintomas, com o fim de obter um restabelecimento da saúde ou do bem-estar; terapêutica

Ou seja, a jornalista foi um pouco otimista achando que poderia falar de todas as terapias que se propõem a tratar o humano ou a doença, e ainda verificar se elas funcionam. E é lógico que não foi isso que ela fez. Pesquisadores passam anos tentando fazer isso e não são tão arrogantes a ponto de se pretender a achar a resposta definitiva para essa questão. Então o título da reportagem só deixa uma ilusão de que poderia ser lido.

Assim, da forma mais superficial possível, a jornalista fala sobre Freud e psicanálise sem ter um mínimo aprofundamento, e comete erros primários nas informações que passa na revista. Claramente defende como melhor possibilidade a neurociência, e chega a nos dar a idéia que a reportagem possa ter sido “financiada” por um neurocientista.

Em um momento da entrevista, depois de falar um pouco de psicoterapias influenciadas por Freud, a jornalista diz que o processo de terapia pode ser longo e não dá garantias. Ora, e que tratamento dá garantias reais de “cura”. Primeiro que a psicanálise não propõe “cura”, e não vou aqui no momento desenvolver isso, em outro texto o farei, mas mesmo a medicina com suas cirurgias, a farmacologia com seus remédios e a neurociência com todo seu aparato também não garantem cura! Na hora H, olhando no olho de um médico antes de aceitar um tratamento, ele nunca garante cura. Uma pessoa pode passar por horas de cirurgia, e ainda descobrir que não adiantou, a doença continua, e terá que passar por outros procedimentos. Um paciente pode passar anos tomando um remédio para um TOC, por exemplo, e esse remédio não só não resolve seu problema, só ameniza, como também acaba tendo que ter doses aumentadas de tempos em tempos, ou mesmo uma série de trocas de remédios para ver qual funciona com cada paciente. A neurociência que se diz agora tão dona da nossa cabeça, também não é capaz de prometer curas, e quanto mais avança, mas se percebe que sempre falta algo que ainda é impossível de medir.

Em outro momento a jornalista desmerece o trabalho de Freud, dizendo que muita coisa que ele concluiu, ele mesmo descartou com o passar do tempo, e que a neurociência já descobriu que os sonhos têm é a ver com as memórias do dia anterior. Todo pesquisador tem o intuito de avançar em sua pesquisa, e de fato, qualquer bom pesquisador, ao perceber que algo não funciona ou não é do jeito que ele havia experimentado antes, ele mesmo descartará suas hipóteses. E isso não é considerado um bom pesquisador? Aquele capaz de não aceitar qualquer resposta as suas perguntas, só pra provar uma hipótese, e sim estar sempre investigando o que de mais ainda pode haver sobre a mesma coisa, criando hipóteses, e assim evoluindo com suas teorias e ciência? Por que então Freud é apontado por descartar hipóteses que obviamente ele substituiu com outras ainda melhores? E de que forma tão absoluta a neurociência se autoriza para absolutizar por medição do que os sonhos se tratam?

Adiante, a reportagem continua dizendo que Freud perde lugar na atualidade por dar valor “aos conflitos interiores do individuo”, sem dar importância ao social. Completa dizendo que a raiz do problema está no social, portanto não é possível prosseguir um tratamento baseado somente na psicanálise. De fato, em muitos casos os pacientes utilizam diversos tratamentos associados. A psicanálise entra num trabalho em equipe, mas nesse trabalho em equipe, um profissional não desmerece o trabalho do outro e é exatamente por isso que o paciente se beneficia. Ficar pregando que só “sua ciência” é capaz de eficácia, isso sim é não visar como centro de tudo o paciente. E não, o centro de todos os problemas de um sujeito não é o meio como ele vive. Os problemas só mudam de nome, mas os conflitos nos seres humanos se fazem presente desde sempre. O social interfere? Lógico, interfere muito, mas os conflitos são do sujeito. E cada sujeito tem um conflito. E por isso a psicanálise enfatiza o sujeito e não o tempo em que ele vive. Atenção, nada é deixado de lado, então dizer que a psicanálise não considera o social, é um erro. Agora dizer também que o social é a raiz do problema é outro erro.

Mas a frente, a jornalista descrever vastos experimentos, usando a neurociência, na busca de comprovar se as terapias funcionam. Ao perceber que 80% das pessoas que fazem terapia saem dos tratamentos melhores do que quem não faz, ela afirma que isso não se deve a Freud, já que suas teorias estão ultrapassadas. Não sei nem por onde começar a debater essa afirmação. Não concordo com a afirmação de que Freud está ultrapassado, mas mesmo se estivesse, com cem anos de existência, a psicanálise não se resume a Freud. E por isso ela não é ultrapassada, pois grandes nomes que vieram depois de Freud conseguiram validar diversas de suas teorias e ainda acrescentar muitas coisas a clínica. E muitas coisas que Freud disse há muito tempo ainda são válidas em pleno ano 2008. Não entendo porque o apego da reportagem a figura de Freud, já que a psicanálise tem nomes importantíssimos que a complementam. Faltou ai ampliar um pouco os horizontes, afinal, muito coisa já aconteceu na psicanálise depois de Freud e com Freud.

Para continuar cutucando Freud, a reportagem comenta sobre o fato de que a eficácia de diversas terapias são tão similares quanto a da psicanálise. Algumas pessoas se tratam com terapias diversas, outras com a psicanálise, e o resultado de “cura” é na mesma proporção. E novamente eu pergunto: quem disse que a psicanálise se pretende a “curar” todo mundo? Quem disse que a psicanálise é para todos? Para fazer um paralelo, é só pensar em quantos remédios existem no mercado para tratar de uma mesma doença? Alguns pacientes não podem tomar um tipo, tomam de outro tipo, e se curam. Cada paciente se cura com um remédio diferente, não necessariamente com o mesmo. Porque seria diferente com as terapias? Cada terapia pode ser boa e adequada a cada situação e paciente, oras! Parece-me mais que a jornalista tem uma visão “endeusada” da psicanálise, que ela mesma desenvolveu, e ela mesma pretende retirar. Não, a psicanálise não se pretende a curar tudo e todos. Até porque isso é impossível. Então sim, o mais normal é que todas as terapias tenham sua eficácia, naquilo em que se propõem a cuidar. Agora, partir disso para dizer que a terapia tem efeito placebo, já é um longo salto…

Para finalizar, e na minha opinião assassinar a idéia de terapia, ela diz que a única vantagem de tudo isso, é que hoje as terapias podem ser mais focadas no resultado. Claro, o paciente agora é produto, o analista um empresário, e eles precisam dar resultado. Era só o que me faltava. Dar resultado pra quem? Se já não bastasse o mundo todo nessa forma capitalista em que só busca o produto, o chamado foco no resultado, ainda querem que a terapia, que se pretende a sair desse esquema, ficar focada em resultado!

Posso dizer que a única coisa boa dessa reportagem foi mencionar que cada vez mais se formam psicólogos de forma “porca” e por isso temos um enxame de psicólogos de meia tigela, sem sua própria terapia, sem formação especifica, enfim, mal sabem de si e da psicologia e se propõem a tratar dos outros. Mas uma pena que folhas e folhas de uma revista antes muito bem prestigiada, tenho sido gasta com uma reportagem tão superficial. Faltou pesquisar, faltou aprofundar, falou saber mais para poder criticar. Foi muito geral e ao mesmo tempo cheia de estereótipos. Basta ser um pouco mais conhecedor para ler e saber que se trata de uma reportagem muito simplória.

Pesquisando um pouco mais sobre isso, percebi que a reclamação não é só minha. E não precisa ser psicanalista pra estar indignado. No próprio site da revista, existe um fórum onde todos podem opinar sobre a reportagem, e lá podemos ver que as indignações foram muitas, de todo tipo de pessoas. http://super.abril.com.br/forum/92357_assunto.shtml

Adicionada a reclamação da reportagem, há uma reclamação por reportagens de meses anteriores, que os leitores categoricamente dizem ser simplórias e sem aprofundamento, digno de vergonha em revista de tal nome. Alguns ainda mencionam que a possível queda tenha algo a ver com a troca de diretoria da revista. Não tenho detalhes acerca de tudo isso, então pouco posso dizer, mas fica a questão a saber, o que está acontecendo com nosso jornalismo. Sabemos que muitas reportagens hoje são financiadas por patrocinadores, e ficamos sempre suspeitos com reportagens como essa, que sem nem ao menos disfarçar, defendem a ferro e fogo uma só ciência. Afinal, não seria o intuito da reportagem mostrar todos os lados da moeda, e deixar as conclusões e decisões para o leitor? Como o leitor pode escolher entre uma coisa tão mal-explicada e outra tão bem-vendida?

Outro dia, na livraria Cultura, quando fui adquirir a revista Cult, e não encontrava, a responsável pela seção de revistas, me disse “que a cult acaba logo, porque é a única revista séria entre as que existem, pois a outra que tinha, Entrelivros, acabou”. Pois é, acabou por falta de anunciante, já que hoje tudo se compra, e tudo se quer vender, e em momento nenhum se pergunta o que queremos adquirir, e muito menos se mostram as possibilidades de escolha. Então qual interesse de anunciar numa revista onde as pessoas têm critica e pensam? Fica realmente mais fácil colocar anúncios em revistas onde as informações são só absorvidas, sem critica. E a psicanálise, que se propõe a não entrar nesse jogo, é atacada tão claramente na figura de Freud, fica a se pensar…

(Quer discutir a psicanálise e saber seus pontos fracos? Ok, existem muitos ótimos autores que o fazem e livros diversos que fazem isso com muita pertinência. Porque até pra falar mal é preciso conhecer a fundo do que se fala.) E é exatamente por isso que não posso comentar muito sobre a autora desta reportagem, pois não consegui descobrir nada sobre ela, nem mesmo reportagens anteriores escritas por ela, o que é uma pena.

E como uma boa reportagem se contrasta com essa. Lembram da reportagem por mim indicada, da revista época, sobre o suicídio? http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG81603-6014-508-1,00-SUICIDIOCOM.html

A reportagem, super bem escrita fala de um assunto super delicado, o suicido, aborda um assunto mais delicado ainda, a entrevista com um psicanalista do menino que se suicidou, e ainda sim consegue ser ótima, pertinente e interessante.

Deixo para vocês minha visão, e espero que possamos partir daqui para dialogar sobre o tema. Leiam as reportagens e tirem vocês mesmo suas conclusões…

6 Comments

  1. sarah

    vou te falar viu, o que mais me chamou a atenção – como aluna de jornalismo e “praticante” de análise – é que, com sua profunda pesquisa em relação ao que está em pauta, além de psicanalista, você daria é uma boa jornalista. =)

    engraçado, porque hoje, no supermercado, vi a tal Superinteressante. Quando observei que a capa contava com a presença de Freud, imaginei que poderia ser algo interessante, mas já na chamada desisti: “terapia funciona? Sim. O auto-conhecimento blá blá blá…Mas isso pode não ter ligação com Freud”. Aliás, a revista lembrou muito meu irmão, que é estudante de medicina e vive dizendo que Freud é ultrapassado e psicólogos são todos fachadas. Só psiquiatra que deve ser levado a sério.

    Do que li em teu texto, só gostaria de dizer que o jornalismo que temos hoje não é um caso perdido, apenas falta de vergonha por parte de jornalistas etc. Vejo como algo global mesmo. O “vírus” não mora na comunicação social, mas em todas as profissões. Assim como há péssimos jornalistas (e estudantes), há péssimos advogados, médicos e psicólogos – como você mesma disse. E por que? Ora bolas, porque o universo (generalizando) se vendeu ao “resultado”. Não importa nada, senão o money. E o que é “resultado” se não o dinheiro? Uma outra coisa, é que também acho que, em parte, há culpa nos leitores. Quem compra possui mais poder do que quem escreve na revista, só que o povo não se dá conta (não se dá conta, aliás, que é, praticamente, um serviço prestado a eles). Taí a causa de tanta revista ruim: além da falta de vida do mundo – o que gera péssimas notícias e idéias, a maior parte da população não sabe usar sua voz. E os que usam, ou são poucos, ou são taxados de “chatos”, “loucos” etc. O sistema é feito para a passividade. Os “ativos” (críticos) que se calem, ou adentrem pela primeira porta escrito “Exit” (porque tudo hoje é inglês também).
    Não que eu concorde com esse mundo, mas é minha visão, cada um carrega um pouco de culpa ao ser passivo – inclusive eu. Mas também, acredito que podemos transformar as coisas, por exemplo, com um blog. =)
    Muito legal teu espaço, adorei.

  2. sarah - novamente!

    aliás, comprei “Cartas a um jovem terapeuta” por sua indicação. imagino que este livro seja muito parecido com o do Irvin Yalom: “Os desafios da terapia”.

  3. Marcelo Vinicius

    Parabéns pela matéria! E gostaria que você lesse esse artigo: http://www.ieppi.org.br/artigosint.asp?id=57

    Abraço!

  4. Aline Accioly

    Sarah, obrigada pelo seu comentário!

    Bom, eu faço minha parte não comprando essas revistas, e passando adiante, ou seja, não recomendando. E sempre que possível abrindo espaço para discutir os temas. Ainda bem que você também não comprou. Mas infelizemte a maioria da população, como você mesmo disse é passiva. Compram porque não sabem que a informação que compram é ruim ou vendida. Assistem diversos programas na tv, de nome e suposta credibilidade que também são vendidos ou muito mal informados. Mas eles, estes que compram e assistem, não sabem disso, e são eles os maiores afetados. Por isso nós, na minha opinião, temos a obrigação de usar nossos meios para falar de tudo isso. Porque se conseguirmos abrir a discussão pra pelo menos uma pessoa, já é menos uma que vai alimentar esse ciclo vicioso. Talvez eu seja um pouco utópica com esse pensamento, mas não dialogar sobre as coisas que suponho erradas seria pior!

    Espero que goste do livro do Calligaris!

  5. Aline Accioly

    Marcelo, obrigada pelo seu comentário! Acabei de ler seus dois artigos e gostei muito! Aliás, um deles me lembrou um pouco do que a Roudinesco discute no livro “Por que a psicanálise?”, conhece? É um ótimo livro para se discutir a pertinencia da psicanálise ainda hoje. O outro artigo, que fala sobre neurociencias também é muito legal, é importante ampliarmos as discussões sobre esse assunto, tão em evidência atualmente.

  6. Marcelo Vinicius

    Aline,
    Obrigado. Não li esse livro não, mas vou procurar sim, pelo visto parece muito bom!
    Realmente precisamos sim aprofundar os casos da psicanálise no ámbito cientifico (não precisa ser a ciência em si), mas que podemos expor que a psicanálise possui uma epistemologia tão válida quanta uma determinada ciência e disciplinas!

    Tenho amigo médico e psicanalista da PUC que diz: A psicanálise é o método heurístico ( heurístico é uma parte da epistemologia e do método científico), ou seja, uma episteme baseada na coincidência espaço-temporal entre a prática e a teoria.

    E é verdade. A heurística de uma teoria deveria particularmente indicar os caminhos e possibilidades a serem aprofundadadas na tentativa de torná-la uma teoria progressiva, isto é, capaz de garantir um desenvolvimento empírico, prevendo fatos novos não percebidos no momento da elaboração do núcleo dessa teoria.

    Mas o que precisamos também lembrar, é que a psicanálise, como toda a ciência ou um método de estudo, não deve parar, não morreu nas pesquisas de Freud, por isso surgiram vários pós-freudiano, melhorando a psicanálise, como Lacan.

    Não é atoa que há vários laboratórios, como laboratórios de psicopatologia psicanalítica da Unicamp, da USP, da PUC-SP, da Universidade de Paris-VII e etc.

    No meu ver, acho que os psicanalistas, filósofos (filosofia análitica / universitária e não idéias baratas, claro) e médicos que se envolve com a psicanálise deve continuar com os estudos, pois tudo muda e a ciência deve continuar acompanhando as novidades do mundo. Toda ciência evolui: a física evoluiu e temos a física quântica, por exemplo. Porque não a psicanálise?

    Abraço!

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