Aline Accioly Sieiro - Psicanalista

Categoria: Psicanálise (Page 2 of 13)

O enigma do feminino

Quanto eu tinha 12 anos, várias meninas da minha escola cortaram seus cabelos no corte Joãozinho. Elas começaram a aparecer, dia após dia, sem os cabelos enormes que carregaram por muitos anos. Eu me senti fascinada e ao mesmo tempo intrigada pelo movimento. Até hoje não sei quais foram os motivos que levaram cada uma delas a cortar os cabelos, mas me lembro de explicações que surgiam para dar conta da novidade. Uma era do teatro, diziam. Outra era “meio masculina” e uma deles gostava de meninas. Cada resposta parecia apresentar uma fantasia sobre o significado do cabelo curto, mas para algumas meninas as explicações não colavam. Elas estavam mais femininas do que nunca com seus cortes curtos; era simplesmente inexplicável para muitos que isso pudesse ser possível. Algo sobre um enigma em relação ao feminino era evidenciado apenas a partir de um corte de cabelo, e eu me perguntava como algo tão simples podia perturbar e chamar atenção de tantas pessoas.

Os anos passaram e um dia desses eu estava conversando justamente sobre cabelos com um conhecido. Escutei ele dizendo que Paula, uma conhecida nossa, estava em um processo intenso de enfeiamento. Paula usa muito o twitter e vem escrevendo sobre um processo de transformação da sua imagem. Tenho a impressão que Paula vive muito mais do uma troca de imagem, mas não posso falar sobre isso, pois não faço parte do que está acontecendo com ela. O importante aqui é destacar que, no twitter, vai ficando evidente a maneira como ela vem vivendo toda essa transição a partir da imagem. Durante um ano, Paula foi deixando de pintar os cabelos, assumindo a cor natural. Alguns meses depois, começou a questionar a importância de manter os cabelos lisos as custas de muitas horas perdidas com chapinha e secador. Passou a assumir também seus cabelos cacheados. Depois de algum tempo, decidiu aderir as sapatilhas e tênis porque não aguentava mais as dores nas pernas por conta dos saltos. Paula começou também a ser mais socialmente ativa no twitter, defendendo opiniões polêmicas sobre diversos assuntos. Não demorou muito para que as pessoas começassem a dizer que tudo isso estava relacionado ao processo de tornar-se feminista, ou, como disse meu conhecido, sobre o processo de se tornar mais feia. Nunca vi Paula tão feliz e feminina. Assumir sua posição em relação ao seu corpo e ao seu jeito de estar na vida tem sido bonito de se ver. Por que a beleza da invenção de cada um, fora do padrão, incomoda tanta gente?

Não somos ingênuos em relação aos fetiches, todo mundo tem suas preferências sexuais e seus fetiches em relação ao objeto de interesse sexual. Alguns homens foram se desinteressando por quem Paula estava se tornando, porque ela já não carregava mais alguns traços que permitiam a esses homens depositar suas expectativas e fantasias sexuais. O que parece ser frustrante para esses homens é que cada vez mais mulheres vêm vivendo processos como esse, descobrindo que não precisam ser um estandarte da fantasia masculina. As mulheres vem descobrindo que podem ter suas maneiras singulares de lidar com seu estar no mundo, com o ser mulher, e que o importante em um relacionamento, mais do que ser apenas depositária das fantasias alheias, é encontrar seus próprios sentidos e caminhos para ser mulher no mundo, mesmo que fiquem em falta com o outro. Alguns homens não estão gostando de ter cada vez mais restrito o número de mulheres que se oferece desse lugar adaptativo; também não estão gostando de encarar suas frustrações pelo fato (importante) de que suas fantasias nunca encontrarão o objeto ideal, já que há uma impossibilidade que marca o (des)encontro com o objeto de nossas fantasias, simplesmente porque ele não existe.

A feminilidade, ou melhor, aquilo que entendemos como identidade feminina é tão diversa que não seria possível descrever suas características. Porém, ainda sustentamos socialmente um ideal sobre feminilidade que foi construído as custas de mulheres como depositárias das fantasias impossíveis. E as mulheres acreditaram nisso e contribuíram muito para que esse engano fosse sustentado. São anos tentando ser sexy (sem ser vulgar), potente (sem deixar de lado o maternal), ativa (em sacar o desejo do homem), ou seja, diversas situações para tentar realizar o encontro impossível entre fantasia e realidade. A relação entre duas pessoas, baseada em uma teoria de amor (e sexo) que busca completude está fadada ao eterno desencontro ou ao apagamento de um para a satisfação do outro. As mulheres estão cada vez mais se permitindo encarar essa impossibilidade, de se apagar para ser quem o outro precisa; de tornar-se mulher e deixar os fracassos desse ideal de amor escancarado.

A idéia de feminino, ou seja, de algo que tem a ver com o que não está posto na identidade mas que nos causa enquanto mulheres, essa idéia ainda vem sendo explorada pelas mulheres e pelos homens. A noção de que somos divididos, faltosos, e que não será um outro que nos completará, aponta para uma relação não mais centrada em um ideal de completude e sim para o avesso disso: é a partir do que falta que será possível construir laços afetivos. Assim, o feminino não tem a ver com potência ou poder, mas com a ausência de um símbolo ou de um objeto e de como fazemos isso nos movimentar na vida; Como cada mulher lida com seu processo de tonar-se mulher e como vai se relacionar com outra pessoa a partir disso. É um processo particular e árduo. É uma construção, as respostas não existem prontas. E quanto mais as mulheres se permitem vivenciar tudo isso, mais elas deixam os homens em contato com o que de feminino também há neles, ou seja, com o enigma sobre seu desejo, suas fantasias de completude e sua relação com a impossibilidade.

Existe algo para além do sexo. Existe algo para além de olhar o outro como objeto de seus fetiches. Existe um tipo de relação estabelecida a partir do que o outro não é e nunca será pra você. Alguns chamam isso de amor, o ato de desejar e aprender a estar com alguém pela vida, caminhando em conjunto, redescobrindo o encontro sexual a partir dessas possibilidades. Isso pra mim é o que embasa o discurso de igualdade de gêneros. Não é sobre poder, sobre quem pode mais e quem vai controlar o outro da relação com objeto. É sobre duas pessoas que são faltantes, por isso semelhantes, tentando construir relações que permitam invenções causadas pelo que falta de maneiras criativas, diversas e sempre em movimento. A fixação na idéia de que o outro deve te dar aquilo que te falta sempre fracassa porque ninguém consegue ser apenas uma imagem para o outro o tempo todo. Ainda bem! E a agressividade que as pessoas andam direcionando umas para outras ilustra bem a raiva que é provocada quando, cada vez mais, as pessoas se autorizam a não ser apenas o que os outros esperam que elas sejam.

O feminismo promove a noção de que todos temos direito de entrar em contato com nosso enigma sobre o feminino que nos habita. Não é sobre defender uma identidade padrão, não é sobre empoderamento de um gênero ou outro, mas sobre estar nas relações com o outro a partir da impossibilidade de completude e da falta de poder. Amor não é sobre poder. O que faz laço entre as pessoas é o cuidado e o afeto que podemos construir a partir das nossas mais profundas fragilidades e não de quem consegue ter mais poder sobre a fragilidade do outro. Feminino não tem a ver com a identificação a um ideal, seja ele qual for (inclusive sobre um jeito certo de ser mulher), mas sobre construir uma resposta ao engima da vida e das relações humanas.

Outro dia, Laerte disse que seu processo de transição está acontecendo, do masculino para o feminino. Será que não somos todos assim, um processo eterno de construções e desconstruções? Será que o feminino não tem a ver justamente com essa descoberta de si mesmo e de como estar no mundo a partir dessas descobertas? Cada um de nós terá que dar suas próprias respostas.

Paula não está “enfeiando”. Paula está dando sua própria resposta ao seu enigma sobre o feminino. As meninas que acompanhei cortando seus cabelos Joazinho provavelmente também estavam se permitindo passear nas diversas identidades, para encontrar suas próprias maneiras de responder a essa questão. Isso parece ser o mais fascinante e bonito em todas elas. Mulheres que se permitem inventar. Uma pena que ainda estamos tão presos na fetichização do outro, sem conseguir enxergar além disso. Homens que também se permitam inventar talvez possam nos ajudar a construir um mundo com as mais diversas belezas possíveis, em suas diferenças.

Violência e Infância: Precisamos falar sobre todos os Kevins

Em abril o GECLIPS (grupo de Psicanálise que faço parte) realizou a Segunda Reunião Aberta do GECLIPS. Eu dividi a mesa de debates com o Promotor de Justiça de Uberlândia, Dr. Epaminondas da Costa. Deixo com vocês o áudio da nossa conversa. 

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De onde fala meu silêncio

Parto do pressuposto que o silêncio diz. A ausência de palavras deixa espaço para o ato de dizer, para além de enunciados. Tão logo os afetos e sentimentos ganham palavras para descrevê-los, algo já se perdeu. Assim como numa tradução entre línguas em que algo sempre se perde, dos afetos e sentimentos para as palavras, algo já se perde também. E estou aqui apenas problematizando sobre o meu lado da história, já que pensar no segundo momento que é o de quem lê, que já lê uma terceira coisa, outra, bem diferentes, nem se fala…

Silencio as palavras para escutar a mim mesma e aos outros. E nesse silêncio eu respondo, Um a Um. Ainda não aprendi como sair dele e usar as palavras sem que elas falem para uma massa e por isso me atenho no meu silêncio. Ele diz que estou invocada e mergulhada no Um a Um. Estou apaixonada por esse sujeito do inconsciente, do desejo, que só se apresenta no seu particular e de maneira bem evanescente. Não consigo mais deixar que as palavras saiam afobadamente num discurso cheio de conhecimento e de saber, mas de pouca verdade. Uma psicanalista disse em um evento, semana passada, que não entende porque tantos psicanalistas são convocados e vão responder sobre questões diversas do mundo. Um psicólogo, um sociólogo ou qualquer outro profissional que estuda o humano poderia muito bem responder essas questões, com propriedade. Um psicanalista não deveria ter que dizer nem formular nenhum saber sobre nada disso, já que ele se sustenta no não saber. Os sujeitos que o convocam é que tem muito a dizer e a partir daí oferecemos a escuta disso, que vem daquele que demanda algo, não o inverso. A frase foi: A psicanálise está em todos os lugares e o psicanalista em outro. Vendo a psicanálise em tantos lugares, estou em outro. Essa tem sido a minha aposta nos últimos anos, mas tenho certeza que existem outras. Por isso aqui falo apenas de mim e de um momento específico, porque também tenho certeza que virão outros. Por hora é esse. $ <> a

 

 *A frase foi enunciada por Nina Leite em um evento que logo será divulgado em vídeo.

*Estou no Um a Um por ai, sempre darei notícias disso. O silêncio é também trabalho.

Primeira Reunião Aberta do GECLIPS – Expressão artística e o universo da imaginação na infância

Convidados:

Prof. Paulo Lima Buenoz

Profa. Silvia Maria Cintra Silva

Prof. João Luiz Leitão Paravidini (GECLIPS)

 

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O fracasso da inclusão

Vivemos a época de uma infância marcada por problemas de aprendizagens e de uma sociedade marcada pelo desejo de inclusão. Bom, quanto a isso, posso apenas afirmar que o processo de inclusão, assim como o da educação, está fadado ao fracasso. Porque há sujeito.

Enquanto todos correm para fazer cursos de psicopedagogia ou quaisquer outros cursos que busquem adaptações para os indivíduos, esses mesmo indivíduos se antecipam a criam novos sintomas (novas dificuldades de aprendizagem, rejeições aos objetos facilitadores da tal inclusão, etc). Assim, os doutores na arte da adaptação (em busca de uma “qualidade de vida) ficam loucos e sentam novamente em seus bancos acadêmicos para entender porque tudo isso falha, na esperança de criar novas fórmulas adaptativas e funcionais para esses “errantes”. Chega  a ser uma linda batalha, se não fosse trágica.

Qual erro insistimos em cometer? A psicanálise já repetiu tanto essa resposta… Desde Descartes (e antes) cometemos o mesmo erro: não dar voz ao sujeito. Quantos anos de pesquisas inutilizadas para compreender que o sujeito fala com seu sintoma, com sua recusa a adaptações, com sua dificuldade de aprendizagem? E acho que ao longo dos anos os fracassos ficaram gritantes: esses sujeitos não estão satisfeitos. E no final das contas ninguém está.

“Para a psicanálise, o sujeito está, por principio, implicado em todo ato. Por sinal, como todo aquele que consulta desconhece essa implicação, visa-se no inicio criar condições para que o sujeito se interrogue sobre as causas daqueles episódios que tonto o incomodam” (Lajonquiere). Essa pretensão de alguns educadores e membros da sociedade em achar que podem vir a saber sobre a singularidade subjetiva de uma pessoa (aluno, deficiente, etc) a partir de si mesmo está obviamente fadada ao fracasso!

Charles Melman já falava disso quando escreveu que o primeiro problema quando se fala de educação de crianças é o lugar em que nos colocamos. Cada um de nós recebeu um tipo de educação, e por isso já temos conceitos formados sobre o que é melhor ou não, o que funciona e o que não funciona. Quando trocamos de lugar e passamos ser os responsáveis pela educação de outros, deixamos de lado a criança de hoje, colocando nossas queixas e reinvindicações e fórmulas em primeiro lugar. O mesmo vale para o deficiente, já que a inclusão prevê a criação de diversos mecanismos e aparelhagens para que ele fique menos “prejudicado” e possa seguir “na mesma condição que as outros”. Um ideal impossível esse, seja deficiente ou não. Estar em mesmas condições, quando isso é realidade para qualquer pessoa??

Nesse sentido, a melhor educação é a que fracassa. Melman já dizia isso porque acreditava que toda educação tende a colocar o mesmo ponto de vista em todas as crianças, e tem a pretensão de formar cidadãos iguais. A inclusão repete a mesma bobagem. Partindo do ponto de vista do sujeito da psicanálise, um sujeito único, com direito de escolha, talvez faça mesmo parte da constituição do sujeito viver contra e a favor da educação que recebeu, pelo resto de sua vida. Quando esse sujeito, a sua maneira, fracassa, está de alguma maneira se apresentando como sujeito. Está se recusando a repetir, e nós assistimos aos milhares de sintomas que aparecem todos os dias no âmbito escolar.

“Só podemos concluir que o investimento narcísico na infância, ou a ilusão da criança-esperança, é uma invenção sintomal da modernidade, então, não é casual que a pedagogia hegemônica atual se articule em torno a uma louca exigência, qual seja, demandar à criança que venha de fato a concretizar sem resto nenhum um ideal de completude e bem-estar. Estamos diante de uma fatalidade e, assim sendo, os educadores de hoje estão condenados à lamentação pela suposta ineficácia profissional, uma vez que a educação das crianças não poderia não estar tomada senão por um voto narcísico” (Lajonquiere)

No final das contas, esse discurso social, a partir da educação e da inclusão, sustenta uma proposta que enfatiza a preocupação com a inclusão, mas o que opera é um agrupamento que novamente resulta em crianças e deficientes na posição de objeto. O discurso educacional é pró-inclusão mas o desejo manifesto ainda é de “normalização”, atuando na perspectiva de “curar” algo que falta no desenvolvimento das crianças. Essas práticas normalizantes tratam as pessoas como objetos, e partir de uma norma que é externa a elas. Resultado: fracasso, claro. Aceitar permanecer como objeto no mínimo resulta em certos adoecimentos.

Alguns, como sujeitos, rejeitam. Não aprendem. Não se adaptam. Algo sempre falha. E ao rejeitar aquilo que lhes é oferecido, um mal estar surge e transborda para todos os lado. Certos de que o que oferecem é fundamental para a evolução da criança, os adultos passam a apontar uma série de problemas, como se eles pudessem explicar ou justificar o porquê da recusa. Só não param para pensar que nessa lógica a criança fica em posição de objeto, permanecem alienadas ao desejo do Outro, que dita o lugar que elas devem ocupar, o que devem aceitar e utilizar para se constituir. Se por um lado podem ficar presas nesse lugar de perda ao negar as ofertas de ajuda, ao não aceitar aquilo que lhes é oferecido, esse movimento pode apontar algo de um desejo, de um posicionamento particular em relação ao lugar que lhe é estabelecido dentro da rede de relações sociais e familiares. Ao recusar ocupar esse lugar, algo se desloca dentre de uma lógica em que essa criança está inserida.

Se a recusa acontece pelo desejo de não ocupar um lugar dentro de um grupo (crianças com problemas de aprendizagem, crianças deficientes, etc) e se constituir de forma singular, ou pelo desejo de não aceitar o lugar já estabelecido no âmbito familiar e social, o fato é que já existem muitos lugares fabricados pelo discurso social para essas crianças. A escuta psicanalítica nos permite tomar o fracasso dessas crianças como uma tentativa de implicação subjetiva. Há fracasso porque há sujeito. Então que a inclusão e a educação continuem fracassando.

 

Era apenas uma manhã de segunda-feira

Era uma manhã de segunda-feira e eu estava a caminho do meu consultório. Duas quadras antes do prédio, encontrei diversas pessoas paradas fitando uma mulher que, enlouquecida, destruía uma carro estacionado na esquina de uma rua. A cena seduzia e mantinha muitas pessoas paradas, em silêncio,  olhando aquela destruição acontecendo bem ali, na avenida movimentada de um bairro de Uberlândia. Eu parei e olhei. Em cinco minutos percebi que ela já havia destruído os detalhes do carro e agora tentava de todo jeito quebrar os vidros. As mãos sagravam, já que os golpes pouco estragavam os duros vidros do carro, mas faziam um enorme estrago em suas mãos. Não dava mais pra ficar parada testemunhando apenas: me aproximei dela, calmamente.

Eu: “Senhora, tudo bem com você? O que está acontecendo?”

Ela me olhou e continuou destruindo o carro, e agora tentava abrir o compartimento de combustível: “Nada, fica preocupada não, esse carro aqui é do meu marido, aquele filho da puta. Eu vou matar ele, mas antes vou destruir esse carro. Você tem um fósforo ai? Vou por fogo no carro.”

Eu: “Infelizmente eu não fumo e não ando com fogo, mas posso te oferecer um copo de água, papel e álcool para você limpar suas mãos, elas estão sangrando”.

Ela para por alguns segundos e olha para as mãos. Só ai percebe que elas estão destruídas, em pedaços, sangrando. Ela para e me mostra os braço roxos: “Isso não é nada em função do que ele me fez, você não sabe”.

Eu: “Ele te bateu?”

Ela: “Não, isso aqui é roxo do hospital, acabei de sair de lá. Fiquei internada com depressão e convulsão, tudo porque ele me largou. Minha filha está passando fome, não temos o que comer enquanto ele tá ai comprando carro, dando dinheiro pra outra mulher. Eu ajudei ele a construir tudo que ele tem hoje, isso não vai ficar assim”.

Nessa altura ela já estava chorando. Finalmente consigo convencê-la a sentar em um banco da praça para que eu pudesse buscar uma água e papéis para ela se limpar. Nessa hora alguém já havia chamado a polícia (que estava a caminho) e um dos homens, que também observava tudo, foi em busca do marido dela que trabalhava ali perto.

Quando voltei, ela estava sentada sozinha, mais calma. As mãos tremiam e o álcool fez a mão arder. Ela recomeçou o choro, tirou de dentro da bolsa alguns papéis e me pediu para ler. Enquanto eu olhava, ela se limpava e me mostrava as feridas causadas pela psoríase que havia começado junto com as crises de convulsão que teve ao receber aquela ordem judicial. No papel, a convocação era clara: ele pedia o divórcio e oferecia trinta por cento de um salario mínimo de pensão para a filha adotada. Ele declarava que não suportava mais as loucuras da esposa, que o ameaçava constantemente. Ela chorava e explicava que nada daquilo era verdade, que ela havia construído uma vida com ele e agora estava sozinha, sem nada. Perguntei se ela havia entrado em contato com algum advogado e ela disse que a lista de espera era de três meses, mas a audiência era naquela semana.

Perguntei se ela tinha com quem conversar, se fazia algum acompanhamento psicológico e ela me falou o nome do psiquiatra e da psicóloga que a acompanhavam. Sugeri que ela procurasse por eles naquele dia, mas nem consegui terminar de conversar pois fomos interrompidas por um rapaz trazendo notícias do marido dela. Ela se levantou com muita raiva ao escutar o recado do marido: “o carro não era dele e que ela ia ser presa”. Ela se alterou, dizendo que o carro era dele e ele negava pois não tinha habilitação. Disse que ia destruir todo o carro e matar ele. Me direcionando ao rapaz, comento que ela já estava se acalmando, o que ela confirma, me agradece e diz que vai encontrar seus médicos no posto para pedir algum atestado médico que a ajude em sua defesa. Ela falou mais alguma coisa que não entendi direito pois a essa altura ela já estava indo embora.

Pessoas imobilizadas pela loucura de uma mulher. Risadas de escárnio. As mãos de uma mulher completamente machucadas, sangrando. A tentava de destruição do outro que resultava apenas na destruição dela mesma. Lagrimas e sofrimento.

Eu falei pouco, mas senti que precisava estar ali com ela apenas como presença, com escuta.

Isso tudo me fez pensar no projeto do Consultório de Rua, que começou focado no atendimento aos indivíduos envolvidos em situação de risco, drogas e álcool, mas hoje acaba acolhendo várias pessoas como crianças, adolescentes e famílias que passam pela praça e sentem a oportunidade de conversar, contar suas dificuldades e compartilhar dúvidas e tristezas com aqueles profissionais que estão ali toda semana. Essa proposta de intervenção fora do setting tradicional nos conta de um outro lugar para a escuta e para a transferência, mas que tem como aposta a possibilidade de uma intervenção terapêutica que se dirige não ao indivíduo apenas, mas ao sujeito que se arraga a essas pequenas oportunidades para emergir, na tentativa de construção de algum sentido a partir de situações de puro nonsense. Essa disponibilidade para a escuta nas mais variadas situações é o que mais me impressiona nas práticas psicanalíticas fora do setting tradicional.

Há os que dizem que a psicanálise não se encaixa nas exigências sociais modernas. E há também os que apostam que ela consegue (como nunca), dar conta desse Real avassalador que nos cerca o tempo todo, em cada esquina. 

*Consultório de Rua, saiba mais: http://www.brasil.gov.br/enfrentandoocrack/superacao/projetos-bem-sucedidos/consultorio-de-rua

Escrever para que?

2011 para mim foi um ano de muita escrita. Escrevi muito aqui e escrevi muito para a academia. E a escrita acadêmica tem algo de trabalhoso, como uma escultura que precisa ser trabalhada pelo escultor, que também não sabe muito bem qual será o resultado final.

Sempre me incomodei um pouco com o processo de autoria e o por quê de escrever um texto. Em algum texto meu anterior aqui no blog eu já havia discutido a idéia do porquê escrever. Escrevemos por vários motivos, mas a escrita que mais me movimentou nesse ano foi a singular, ou seja, aquela que teve algo de inédito e particular. Sem esse toque especial, ou seja, sem algo minimamente novo no texto, penso que ele perde um pouco o sentido. Repetir, pra que? Se for por acrescentar pelo menos uma vírgula, ai até posso entender o motivo da escrita. Mas apenas para repetir? Não, obrigada.

E no meio acadêmico, as vezes a escrita parece de um gozo em looping: todo mundo falando das mesmas coisas de maneiras quase parecidas. Vejo revistas (periódicos) em que os artigos parecem sempre falar de uma mesma coisa. Parece que as pessoas precisam ouvir muitas vezes a mesma idéia, dita várias vezes por pessoas diferentes, para acreditar naquilo que é já é realidade na prática, ou melhor, na vida. Teorizar muito pode ter esse problema. E posso dizer que esse é um problema que eu enfrento constantemente na minha escrita. Quantos são os textos e páginas que eu simplesmente jogo fora por achar que são apenas repetições de coisas já ditas. E não adianta tentar me convencer de que “esse é o modo como eu vejo isso, então isso é novo”, porque isso não me convence. É preciso ter algo de novo sim, e que tenha sentido não só para mim. O tempo é muito curto pra perder tempo repetindo. Ficaria mais fácil indicar a leitura e não escrever todo um texto para defender algo que já foi escrito.

Talvez por isso eu esteja escrevendo menos no blog. Porque quando navego pela internet, tenho a sensação de que todo mundo já está dizendo tudo e todos já estão dando as informações e suas opiniões sobre elas. Por outro lado, talvez eu tenha escrito menos também porque certos temas são delicados, as pessoas não estão preparadas para ouvir o âmago da questão sobre determinados assuntos. Escrever desse jeito pode suscitar mais agressividade do que de fato a abertura para um dialogo reflexivo.

Tenho um texto de 2008 que faz muito sucesso. Outro de 2010 que também tem muitos comentários. Mas, tanto tempo depois, ainda recebo comentários e conclusões repetidas de pessoas diferentes,e isso me deixa levemente irritada. Talvez hoje eu entenda melhor a resistência de Lacan em escrever. A fala, a aula, o diálogo nesse sentido é muito mais movimento. E por sempre se dirigir a alguém “concreto”, talvez produza algo de mais genuíno no presente, entre quem fala e quem escuta. Porque esse ouvinte não tem nada de passivo. É uma construção ali, na relação. Já na escrita, o leitor pode ser movimentado, mas não necessariamente o escritor. Vejo tantos textos que parecem ter sido escritos por robôs… Não sei divago… Talvez por estar muito envolvida no trabalho analítico com meus pacientes, percebo a importância da construção em análise. Aquilo que é feito em transferência ali no hora. Que depois não é a mais a mesma coisa. Que fora do setting não tem muito sentido. Acho que estou pensando assim da escrita um pouco. É uma maneira de se pensar, que, obviamente, não é a única. Talvez a escrita esteja mais para o tempo de compreender e momento de concluir.

Talvez eu me incomode também com o lugar da repetição, como conceito analítico, no processo de constituição e implicação subjetiva das pessoas. Bom, mas isso já é tema para outro texto.

Psicanálise e Psicose Infantil a partir do filme “A viagem de Chihiro”


Como estudar psicanálise? Essa pergunta aparece e reaparece constantemente nos corredores da Universidade e aqui no meu blog. Me lembro sempre de um professor que, a respeito dos Seminários de Lacan, dizia que fazia pouca diferença por onde começar os estudos já que a entrada seria sempre abrupta. Outro dia, pensando sobre a estruturação de um Grupo de Estudos em Psicanálise, eu tentava decidir quais textos freudianos utilizar, e, ao pedir opinião de um outro professor, escutei a mesma frase sendo dita: “Pouco importa por onde começar, sempre haverá muito que se dizer e a entrada sempre será a partir de um corte.”

Em psicanálise você não estuda e aprende: você estuda, pensa, questiona e transmite. E o que se transmite? Segundo Lacan, algo de um saber não sabido. Se retomamos a idéia de inconsciente estruturado como uma linguagem que é não-toda, ou seja, a partir do Real, sempre haverá algo de  inominável. O real não se diz, mas algo produz um efeito que tentamos nomear a partir do simbólico.

Com essa breve introdução, apresento o Seminário desenvolvido pelos meus alunos da disciplina de Psicopatologia II, que aconteceu no curso de Graduação em Psicologia na Universidade Federal de Uberlândia. Germano Almeida, Caroline Mazzutti e Nayara Santana apresentam o seminário, com a colaboração de Jordhan Coeli e Sarah Rodrigues.

O seminário está dividido em dois vídeos. Todas as referências são apresentadas ao final do segundo vídeo. Recomendamos que vocês assistam primeiro o filme “A viagem de Chihiro”, já que oferecemos aqui algumas considerações a partir do filme.

Parte 1

http://www.youtube.com/watch?v=YaxCNYnHUWs

 

Parte 2

http://www.youtube.com/watch?v=9z5hfSvVZ3E

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