Estava saindo do consultório hoje e encontrei dois psicólogos no elevador do prédio. Eles estavam comentando sobre um paciente que um deles havia dispensado porque deixava a sala “com um odor impraticável, levava dias para o cheiro dele sair da sala”. Segundo eles, o paciente era “disruptivo, desconexo, dissociado”. O elevador chegou no andar da portaria e os dois psicólogos seguiram seu discurso sobre as questões do paciente dispensado.

Semana passada estava em toda mídia a história de uma médica que contou sobre o estado de saúde de Marisa Letícia em um grupo de whatsapp e ainda a história do médico que descrevia a maneira possível de deixar Marisa Letícia morrer mais facilmente.

Ontem, escutei dois amigos comentando sobre psicólogos que saem da graduação sem nenhum conhecimento básico sobre a teoria, quanto mais sobre clínica e ética, e vão permanecendo nas instituições públicas, “trabalhando” a favor das falências da saúde pública. Segundo eles, são profissionais que teoricamente entendem um ato que deve ser realizado, mas na hora que a situação clínica acontece, não sabem reconhecer o momento na experiência vivida, discutida anteriormente na teoria.

Com o conceito de clínica e ética temos o mesmo problema. Os profissionais de saúde estudam ética e cínica durante anos na graduação, pós graduação e nos estágios. Porém existe um gap entre aquilo que eles estudam e respondem na prova com a situação de vida em que a clínica e a ética acontecem, no ato da relação entre dois humanos. Escutei, ainda semana passada, um professor universitário preocupadíssimo com a questão da ética nos cursos de saúde; pensava seriamente em aumentar as discussões sobre ética e dificultar o processo de validação para a prática clínica. “Não é preciso apenas a teoria e as condições financeiras para lidar com humanos, é preciso mais do que isso”.

Ano passado, dando aula em um minicurso sobre a psicanálise, uma aluna ficou extremamente perturbada quando sacou, durante o minicurso, que o ato do analista na clínica não oferece segurança, garantias de bem estar financeiro e social. “Mas se eu preciso combinar o valor com cada paciente e a questão do valor faz parte do tratamento, como vou pagar minhas contas? “. A preocupação é real, mas estava calcada no desejo econômico e social de estar situado no campo da saúde. Com a medicina, sabemos que esse buraco é bem fundo: durante anos a fio se fez a escolha pela profissão para ter dinheiro e status social. O mesmo acontece com a psicanálise. “Das duas uma: se não dá dinheiro, dá poder”, disse uma estudante de psicanálise.

A psicanálise não é um ofício para todos. Não basta ler alguns textos de Freud ou Lacan e se intitular psicanalista no cartão de visita e na plaquinha de divulgação do site na internet. Da mesma maneira, a clínica não é para todos. A clínica não é um espaço físico localizado na rua, no caps ou no hospital. Os pacientes, seres humanos, têm esse “defeito” de ter um corpo, carne, ossos, odores e estranhezas. Eles falam, sentem, e constantemente apresentam questões que nos instigam, que nos apresentam o que não entendemos sobre diversos aspectos da vida e do mundo. Eles são desobedientes, tem suas próprias teorias sobre eles mesmos e são espertos o suficiente para ficar revoltados quando sacam que não estão sendo bem atendidos. Que trabalho esse negócio de clínica, não é mesmo?

A clínica é um método de investigação e tratamento sobre as causas enigmáticas do adoecimento no homem. A psicanálise é um método de investigação e tratamento do sofrimento humano causado por seu inconsciente. Ética é o princípio responsável por criamos leis que nos permitam manter a condição civilizatória e dizer não a barbárie presente na humanidade. A ética em psicanálise nos ajuda a pensar sobre a articulação entre a ética do desejo particular do sujeito e a dimensão do laço social.

Esse ano de abertura da Hæresis, vamos estudar o seminário de Lacan sobre a ética. É preciso investir um tempo com essas preocupações fundamentais de qualquer atuação clínica. Mais, ainda: é preciso investir na descoberta particular do desejo de um profissional em atuar na clínica e na psicanálise. Ou vocês vão continuar acreditando que a falência da civilização está apenas nos senados e não nos seus atos cotidianos de enganos (como os psicólogos que se intitulam clínicos, mas dispensam um paciente porque ele é a presença viva da angustia de um não saber – e não tem pudor algum de falar sobre isso no elevador de um prédio comercial)?